domingo, 20 de fevereiro de 2022

Quando a porta abrir a casa vazia

 

Obs: este texto é baseado na realidade, e uma  forma de homenagem a uma pessoa especial,  que partiu nesta pandemia, e deixou esposo, filho e família, para sempre mergulhados na saudade...


Eu ainda lembro, com a profundidade dolorida de todos os detalhes, quando eu observava, distraída, o horizonte daquela pracinha infantil, e, de repente, os vi abrir a porta para a casa vazia. Aquela mesma porta que sempre dera acesso ao sorriso e alegria de chegar ao lar, desta vez estava desabitada, de sentido, de amor, de gente.  Ao ver a tristeza de pai e filho ao adentrarem na casa, apáticos e desorientados, fiquei imaginando o quanto ela estava cheia de ausência, em cada canto, e parecesse para eles, a imensidão de um vazio interminável.

Imaginei o sofá, que sempre foi abrigo da família, agora estar gélido e sem sentido naquele lugar. Logo mais adiante, os espelhos, que antes refletiam os sorrisos e alegria deles, nesta hora evidenciando somente a tristeza dos rostos descoloridos pelas lágrimas, que ainda não se acostumaram com a violência daquele adeus.  Um pouco mais a frente, estava a mesa, ela que sempre fora sagrada, local de encontro, de planos, de confraternização, desta vez apenas refugiava as lembranças, e com essas recordações, os olhos dos dois já não suportavam carregar o peso da dor. A mesa estava lá, intacta, pronta para ser posta, porém, o essencial havia partido.  Um lugar nela estava vazio, para sempre, e isto jamais faria o móvel se encher de sentido, aliás, nada naquela casa.

 A imensidão do vazio daquela partida, se refletia em cada objeto, em cada parede, em todos os detalhes. Suportar aquilo era um fardo pesado demais para os dois. Em tudo havia a presença dela, contudo, nesta totalidade, também estava a ausência, multiplicada ao infinito, que dilacerava aqueles dois corações. Abrir aquela porta, agora vazia, que sempre havia dado acesso à toda grandeza e abundância do amor, se tornara dilacerantemente insuportável. Em cada espaço, residia uma tonelada de saudade, que os esmagava e os quebrava por dentro, e que era impossível de diluir, aceitar, dissipar.

Até mesmo a gatinha, Anakin, externalizava essa quebra eterna, mesmo que não entendesse a razão da ausência. Na janela da casa, a bichana olhava para a rua, com os olhos marejados e compridos de esperança, como se esperasse, em breve, ela chegar, assim como quando foi resgatada, em uma caixa de papelão.  Mas a única certeza é que a porta, de agora em diante, para sempre abriria a casa vazia. Pai, filho e gatinha precisariam resgatar os milhares de estilhaços de seus corações para conseguir abrir a fresta de uma nova e dolorida existência, para sempre marcada pelos destroços da perda.  

Por fim, assim como a casa, cada vez descobriam-se mais desabitados de sentido, mergulhados no caleidoscópio de lembranças que a traziam nos seus corações. E de tanto entrelaçarem-se neste fio doloroso de saudade, teve um momento que nunca mais quiseram abrir a porta da casa vazia. Desta forma, partiram de lá, pois toda a riqueza que o dinheiro não pode comprar, lhes fora arrancada para sempre.  

Nunca saberemos quando será a última vez que a nossa porta abrirá para a casa cheia.  Então, valorize, ao extremo, cada vez que chegares nela, e ver refletido o maior sentido da vida. Porque chegará o dia em que teremos apenas a vastidão das memórias para conviver e sentir o amor. E haverá um momento em que seremos apenas a imensidão da saudade e das lembranças de alguém.

Obs: foto real, da gatinha Anakin, que Camile me enviou em vida. Saudades eternas!


 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Marcas profundas

 

Nada era como parecia naquele lugar. Tudo possuía uma dolorida, profunda e indesejável verdade oculta, que ninguém queria ver. Embora o vento soprasse a brisa calma do interior, e trouxesse às narinas o perfume doce dos lírios, a vida, nas suas profundezas, tinha o amargor do fel. 

Aos olhos desconhecidos, tudo transparecia tão óbvio: uma existência muito simples, mas feliz. Porém, nada era como parecia.... A alma doía, porque quando ela é espremida, não há sorriso, nem brisa, nem o cheiro abaunilhado dos lírios que possam camuflar a dor e transformar em alegria. E quando se trata de uma criança, para a qual é preciso tão pouco para ser feliz, sentir o coração sangrar, dia a dia, sem socorro, é ter arrancada toda a magia da vida, aos poucos. 

Era assim naquele tempo e lugar. Haviam flores, mas viver não era belo, nem colorido de sonhos. Havia a calmaria do longínquo lugarzinho do fim do mundo, porém, o coração era agitado de dilacerações constantes. Havia a doçura das frutas colhidas no pé, no entanto, a alma amargurava de tristeza. Havia a sanga e o rio transparentes, que corriam calmos e contornavam suavemente os obstáculos do caminho, contudo, as pernas tremiam de medo da turbulência daquela existência.Havia o canto alegre dos pássaros, porém, a felicidade era reprimida naquele coração. 

Por trás das sardas salientes, da cara angelical e da franja mal cortada, existia uma cortina densa de temor, da violência psicóloga, moral e física. Havia tudo de belo lá, menos amor, e isso, era suficiente para nada haver. E mais triste, é que todos de perto sabiam, mas fingiam não ver.

sábado, 17 de abril de 2021

O hoje é a saudade de amanhã

 


A pandemia remexeu o tempo e revirou o baú da saudade.  Quanto mais isolados ficamos, maior é a busca pelas memórias, que ao final, nos trazem acalento, e também esperança.

Quanto menos experiências podemos ter, como é o caso da época atual, mais nos esticamos para beber na fonte do passado (que um dia foi o presente), seja ela distante, com ares de infância, ou ainda fresquinha. O fato é que esse momento, evidencia que, além de sermos uma construção coletiva, somos fruto de nosso tear pretérito. Não chegamos ao presente, sem que nosso passado tenha sido fecundado de escolhas e caminhos, os quais optamos  consciente ou inconscientemente. E esse passado, será sempre a saudade de nossa vida. Essa é uma, entre as tantas constatações que tenho feito nessa época de isolamento.  Portanto, o hoje certamente será a saudade de amanhã, pois é nele que a vida se projeta e acontece.

Mesmo  que o presente seja envolto de fugacidade, é nele que somos reais,  que nos solidificamos e nos construímos. E igualmente, ainda que não percebamos o quão bom ou carregado de significações seja ele, daqui a alguns meses, ou anos, o dia de hoje será a saudade guardada no baú da memória. Quem nunca falou a frase: eu era feliz e não sabia.  Essa é a maior prova de que o presente será a nossa eterna saudade, e mais do que nunca, precisa ser vivido em sua intensidade,  pois não há outra volta senão a da nostalgia.

Meu conselho é que apesar de toda a privação que este tempo de pandemia nos exige, saibamos construir as melhores memórias, carregadas de amor, no seio de nossa família.  Com certeza, um dia visitaremos elas, para nos banharmos de vivacidade.  

Pois, quanto mais envelhecemos, maior será o baú de sentimentos guardados, e a frequência com que o abriremos, seja por melancolia, ou para tirarmos lições sobre esses recortes de vida.

E ao final, no ápice da velhice, quando nossas experiências presentes forem ínfimas, só nos restará um grande e revirado baú de saudade, para alimentar os dias, já sílfides de vida, com o vigor das experiências que vivemos outrora.

E você, me conta ai qual a sua maior saudade¿

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

No futuro, qual história você contará de 2020?

 

Deste ano de 2020,  não teremos muitas, ou nada de certezas absolutas, aliás a única coisa que podemos afirmar, é que a pandemia desconstruiu nossos alicerces, e que por mais planejados ou projetados que eles tenham sido,  nada ficou intocável. O que  exacerbou a fragilidade da nossa existência, e das nossas convicções!  O covid-19, implacável e letal, onde não ceifou vidas,  desmoronou projeções. Ninguém sairá ileso, nem tampouco, sem ser confrontado com suas certezas, dogmas e sentimentos. O vírus, invisível e mortal, nos colocou, involuntariamente, em um cenário imprevisível, de tumulto e inquietação. Fomos todos surpreendidos e obrigados a inserirmo-nos neste novo contexto, que testa constantemente nossa tolerância,  empatia, verdades, nossa humanidade, ou falta dela.

 Descobrimo-nos interligados por uma enorme e invisível teia, onde a ação de um, impacta diretamente na vida do outro.  E desta forma, a nossa empatia foi testada, como nunca. Muitos conseguiram perceber essa profunda conectividade que nos emana, outros, preferiam ignorar os alicerces da humanidade, e rasgar, com seu egoísmo e mesquinharia, o equilíbrio da existência planetária.  Saíram de casa sem necessitar, aglomeraram-se, ignoraram as máscaras, os cuidados, e por consequência, a vida.

Teve quem lutou para permanecer com suas certezas e planejamento anterior, dentro de seu casulo até então inabalável,  mas a força invisível da pandemia, mudou tudo ao redor, e assim também, a sua projeção. Então descobriu-se ai, mais uma vez, que ninguém é imune à  transformação do ambiente externo. Pois quando o mundo muda, insere a todos nesta mudança, em maior ou menor proporção.  

E o furacão de mudanças atingiu em cheio, a dinâmica dos negócios,  da educação , da saúde, de tudo o que nos circunda.  Nesse sentido, a tecnologia salvou as conexões humanas desse universo , e marcou uma dinâmica, profetizada por muitos gurus de um futuro passado. O  trabalho remoto, a educação online, as teleconsultas, as compras pela internet, passam, indiscutivelmente,  a  escrever as páginas de um novo futuro.  Há ganhos e perdas nisso! Certezas? Nenhuma! Deixemos o tempo contar, ou os gurus preverem!

Mas se há algo profundamente testado e abalado, certamente refere-se à dinâmica de nossa vida familiar! Aqui é pertinente salientar que não há nada mais devastador do que o vazio de perder um ente querido. E nessa esfera, foram milhões, para os quais, 2020 será sempre uma página arrancada, violentamente no livro da vida, a qual nunca mais será preenchida, nem esquecida e aceita. E isso, salienta-se, deveria ser o suficiente para todo mundo ter sua vida tocada e transformada. Mas infelizmente, muitos apenas viram números, ao invés de vidas ceifadas.

Ainda, no tocante à esfera pessoal, jamais os sentimentos e a tolerância foram extremamente confrontados como agora.  Se a tecnologia encurtou as conexões com o mundo externo, a maior presença física, no seio familiar, desafiou a veracidade dos  relacionamentos e sentimentos.  Em um enredo novo, e incomum para a era tecnológica, a pandemia obrigou os casais a conviverem e viverem, face a face, as alegrias e também, as “misérias” dos dias. E o “até que a morte os separe” de repente se diluiu, e o covid-19  esfacelou diversas uniões. Já, em outros casos, confirmou a pureza e veracidade de um amor, que fora ainda mais edificado pelo confrontar do tempo juntos.  

Da mesma forma, na arena dos relacionamentos entre pais e filhos, foram testados os limites, e igualmente, a beleza e os desafios da maternidade e paternidade. Sem dúvida, nasceram novos pais, mães e filhos, e por consequência, muita ressignificação disso tudo. O “vazio” que a falta da escola deixou, precisou ser preenchido com o amor e atenção dos pais. Tarefa difícil para quem costumava delegar a criação dos filhos ao ambiente externo.  No mínimo, muitos pais precisaram repensar seu papel. Não foi e não está sendo fácil para ninguém, conciliar as múltiplas funções no mundo e na casa, junto com a criação, em tempo integral, da prole. Por outro lado, esta janela de proximidade que a pandemia abriu, foi e é a grande oportunidade para se (re)conhecer melhor, e entender a importância da família, e das pequenas coisas. Se os filhos não tiveram as atividades escolares desejadas, nem as brincadeiras com os amigos, o atual momento brindou a chance de ensinar-lhes os valores das pequenas coisas, como cultivar uma plantinha, ajudar em uma tarefa da casa, a cozinhar, bem como, e principalmente, cultivar o amor. Aqui em casa, nunca escutei tanto a palavra “ eu te amo”, por parte do meu filho, e também, nunca havia a falado tanto. Essa, sem dúvida, foi a página mais bonita que construímos, em meio ao caos do livro da história da pandemia.

Ademais, não podemos esquecer do vazio que ficou o seio familiar sem a presença dos avós, que não puderam acompanhar o crescimento dos seus netos, e estes, precisaram abdicar do carinho deles.  Quem respeitou a teia invisível que nos emana, sabe o quanto foi e está sendo difícil a falta do afago dos nossos pais, os avós de nossos filhos. Certamente, esta é uma dolorida página em branco da história de 2020 em nossa vida.

Eu sei que lá na frente, todos nós, transeuntes deste plano terreno e atores de um tempo histórico, teremos uma página triste para ler deste ano fatídico, que moldará muito os rumos da existência humana. Mas, ao mesmo tempo,  espero de verdade, que em meio a tanto sofrimento, você ainda possa ter uma história bonita, nascida desse caos, tal qual uma flor no deserto, para contar para seus filhos e netos, na posteridade.  E ai, qual será a sua?

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O que precisamos aprender com as plantas?

 Amo rodear-me de plantas, porque elas são profundamente terapêuticas, simbólicas, lindas, mas mais do que isso, porque diariamente me ensinam sobre a arte de viver. A intensa semelhança entre nós humanos , e elas, as plantas, reside na complexidade que é existir e nutrir-se , constantemente, sob a égide dos mais diferentes tempos e circunstâncias.

Num tear mágico de fertilidade, a gente nasce, e tal qual as plantas, por vezes em solo fértil, por outras, em terreno árido. Precisamos aprender, a nutrirmo-nos das melhores substâncias encontradas ali, embora , nem sempre são as  ideais. A beleza e peculiaridade de cada um, reside no fato de ser flor, com as características de quem se adaptou e nutriu-se do lugar, seja ele o deserto, ou o solo adubado que desde cedo encontrou.

E a ventania inevitável da vida vem, com o gingado assimétrico das estações indefinidas, às vezes, com chuva intensa de pedras, por outras,  com sol escaldante, que derrete até o pólen. Assim, é nossa complexa existência, e desta forma, também é a das plantas.  E embora elas, algumas vezes, percam  até o caule,  renascem ainda mais belas e definidas, em outra estação.  

A nossa vida, tal qual  elas, se guia e gira pela  dança constante  do sopro dos ventos. Tem dias que a calmaria, com maestria, rege nosso existir, numa doce sinfonia. E a gente sorri, e sai florindo por ai. Entretanto, de uma hora para outra, vem a ventania e desfolha-nos, desnuda-nos, arranca nossas certezas,  construções e convicções existenciais, evidenciando a fragilidade de todo o belo e de toda a vida.  

Mas apesar de tudo, é preciso resistir e seguir. Porque a vida e o tempo não nos dão opções, senão renascer e reconstruir-se, ou enterrar-se e morrer.  Então a gente descobre a preciosidade e a força de nossas raízes,  sobre as quais, talvez ainda não havíamos parado para pensar , afinal , não estavam evidentes, neste mundo de aparências.

E aprendemos, que podemos renascer e (re)significarmo-nos, ainda mais que antes, quando somos sustentados por raízes resilientes,  fecundas de princípios e valores, que nos farão vislumbrar , sempre, uma nova oportunidade para folhar e florir. Porque a vida é começo e recomeço, e existir  com a experiência de quebrar-se e renascer, é ainda melhor do que  saber apenas viver sem partir-se.

Assim, a gente descobre que a ventania que nos desfolhou e "desfloriu", também já espalhou nossas sementes por ai.

sábado, 6 de junho de 2020

Infância: uma fonte para toda a vida


 
Eu acredito  que a infância será para sempre a fonte aonde iremos buscar refúgio para a alma. Todo mundo tem nessa fase, as recordações que alimentam a existência, e quanto mais envelhecermos, maior será nosso retorno àqueles momentos que o tempo já levou, mas  que os sentimentos os impetraram no coração. E as melhores memórias que tenho do meu tempo de criança, e que, talvez, foram decisivas para minha construção enquanto sujeito, são as mais simples, mas que carregam toda a riqueza da vida: a natureza em suas diversas manifestações, em especial, as flores que minha mãe cultivava. Morávamos no campo, em um lugarzinho longínquo de tudo, quase isolado do mundo. Carecíamos de quase todos os recursos materiais para uma vida digna. Não tínhamos energia elétrica, geladeira, água encanada, televisão, chuveiro, e por ai vai. A vida era mesmo sofrida, e eu, desde cedo ajudava no trabalho da lavoura. Meus brinquedos, eram as embalagens vazias de alimentos e a própria terra. Todas as “regalias” que meu filho hoje tem, eram inimagináveis e inatingíveis para a criança que eu fui um dia.  Somado a isso, nunca tive carinho paterno, aliás, só desprezo. Eu teria todos esses motivos para lembrar-me com mágoa e rejeição, mas no contraponto desse lado triste, há algo que me salvou: as flores da minha mãe, as árvores, os bichinhos, a natureza, em suas múltiplas dimensões... E no paradoxo de dois mundos extremos, eu fiquei com os encantos das riquezas que pude guardar e gravar no coração.  Apesar de toda a literal miséria, minha querida e amada mãe nunca deixou de cultivar e plantar, muitas, flores. Talvez, consciente ou inconscientemente, fazia isso, para poder me oferecer um contraste para aquele mundo tão sofrido. E deu certo! Ainda lembro, com tanta vivacidade de memória, as fartas carreiras de lírios brancos que minha mãe cultivava na frente de casa. Adorava, ir vê-los e cheirá-los, de manhã cedinho, quando ainda estavam orvalhados pelo sereno da  madrugada. O seus pólens amarelos, se desmanchavam e coloriam meu nariz e minhas mãos, exalando  beleza, numa sinfonia de antagonismo para aquela vida árdua. Também, impossível esquecer a magnitude e profundo encanto das dálias, cor de vinho, vermelhas, brancas, bem como, das coloridas palmas de santo antônio, que se abriam em um espetáculo tão singular, e oposto à peculiaridade  daquela nossa condição de existência.  Na minha memória residem as rosas, as compridas carreiras de margaridas brancas e amarelas, que minha mãe cultivava, e que pintavam a frente da nossa singela casa, com ternura, cor e movimento.  Tão vivas quanto a singularidade do meu presente, são as flores de “brinco de rainha”, que se avolumavam em touceiras,  de fronte da nossa humilde casa de madeira,  as quais eu adorava imitar os beija-flores, e sugar-lhes o néctar, injetando doçura naquela vida amarga.  E ao lado, rentes àquela estreita estradinha vermelha e barrenta, que dava acesso ao nosso fim de mundo, estavam os hibiscos duplos, de cor vermelha, e as espetaculares  e múltiplas flores brancas de “grinalda de noiva”, que se exibiam magnificamente, evidenciando que a vida, apesar de tudo, podia ser bela.
Assim, nesse profundo contraste, as flores da minha mãe, me ajudaram a construir uma realidade paralela, a qual me moldou de coragem e resiliência, para mais tarde enfrentar o mundo, com outros olhares. E os animaizinhos também foram fundamentais para mostrar-me que o amor pode estar em qualquer lugar onde haja um coração.  E esse amor, que eu não tive do meu pai, eu via no meu porquinho, chamado Xiquinho, o qual deitava-se quando me via, a espera de um carinho. Ah, e o cachorro “Canheto”, que dava a patinha para dizer bom dia, e ia junto comigo para todos os lugares, ressaltando o valor da amizade. E os inúmeros bezerros , galinhas, e mais tarde, os gatinhos, todos ajudaram-me na arte de ver a beleza da vida, mesmo no meio do caos. E assim, como planta, eu me moldei às peculiaridades da aridez aonde eu estava, mas sabendo que era também semente, para florir em outros lugares.  
 Meu amor pela natureza ficou tão grande, que após crescer um pouquinho, eu mesma comecei a plantar árvores e flores, para colorir do meu jeito, a minha singela vida. Entendi que rodear-me do que me tirava das trevas, era a maneira de dar a volta por cima. Assim, de tempos em tempos, eu plantava uma árvore, e algumas flores, e nesse processo terapêutico de cura e afago da alma, nasceu meu amor pelas pitangueiras, as quais fiz carreiras, em frente a nossa casa.
Ademais, jamais poderia esquecer da grande contribuição do rio Uruguai, que banhava nossa terra. Ele se tornou um refúgio de observação e beleza para mim. Toda vez que eu ficava triste, ou buscasse inspiração, caminhava pela plantação, até ter a vista do rio. Sentava-me em uma pedra grande, e observava a calmaria das suas águas, bem como, os obstáculos que ele contornava. Aprendi, que o rio, que eu tanto mirava, era belo por ser tortuoso, e por ser assim, alcançava, de mansinho, o mar. Aos poucos, compreendi, que tal qual o rio, eu também era maior que aquele lugar, e precisava, lidar com as barreiras da minha vida. E assim eu fiz (outro dia escrevo sobre isso). De tanto  observar o movimento da natureza, eu não tive medo de lançar-me para outros solos e ventos, na certeza de que a vida é balanço e recomeço, é partir , e é chegar.
Então, o conselho que eu deixo: plante flores para seus filhos, no chão, em um pote, onde der. Se puder, cultive uma árvore, tenha um animalzinho, e incentive o amor entre eles. Eu faço isso com meu filho, porque  aprendi que uma das melhores heranças que podemos deixar para um filho, são as experiências, que o moldarão, e que se traduzirão em boas memórias da infância, as quais , pela vida toda, ele beberá, em profundidade, e em cada detalhe.
Hoje, embora naquele lugar não exista mais nada, ele ainda habita em mim, com a minuciosidade  e riqueza de todos os pormenores.  E, morará na minha existência,  pelo resto da vida, como um afago para a alma, e um sopro de coragem, toda vez que meu presente estiver um pouco cinzento, ou que eu quiser me deliciar na nostalgia de um tempo  singularmente meu.