Para quem anda com olhar um pouco observador, o centro de Porto Alegre diariamente se renova, em centenas de nuances, que refletem a pluralidade, as contradições, as tristezas porém , ao mesmo tempo, as belezas da vida. Há um frase que diz “tu não podes tomar banho duas vezes no mesmo rio, pois aquelas águas já terão passado e você também não serás mais o mesmo”. Pois arrisco-me a afirmar o mesmo sobre o centro de Porto Alegre: “Você não passarás duas vezes no mesmo centro, pois ele terá novos atores e novas histórias eclodindo, e tu não será mais o mesmo, pois, terás levado um pouco delas contigo”.
Resido aqui há 8 anos e, sempre que volto do centro, há algo de novo, gritante dentro de mim, oriundo das cenas, tramas e memórias dele. Desde o mendigo que abocanhou um toco de cigarro no chão e brindou a saúde, o homem de pinos metálicos nas pernas e na vida sofrida da rua, os indiozinhos balançando o corpo e cultura na hibridização que é o urbano, até a vendedora de calcinhas que não se cansa de anunciar e invocar a imaginação dos adultos, que em algum lugar, mágico talvez, há uma fábrica delas, de todas as cores, tamanhos e para todos os gostos. E o que seria do centro sem as vozes roucas daqueles que num ato infinito de esperança ecoam a compra de ouro e cabelo.
O centro de Porto Alegre é uma teia tecida, diariamente em tons diferentes, pelos milhares de transeuntes que o compõem, e fazem dele, um lugar único. Alguns fatos se repetem diariamente, nunca iguais, porque são feitos de pessoas que mudam continuamente, mas outras histórias que se desenrolam, são incomuns, e requerem um pouco mais de observação. São daquelas cenas que incrustam de perguntas a alma e, implicitamente nos fazem metamorfosear num ato secreto depois de tê-las presenciado. Carregadas de contradição e interrogação, nos revelam que a vida é muito mais do que dogmas, aparências e existência física.
Dois desses casos presenciei essa semana quando caminhava no centro. Um dia, entre uma pilha de embalagens, roupas amassadas e jornais, um mendigo esforçava-se a contemplar uma revista playboy. Na lacuna vazia de amor, carinho e companhia, fitava a mulher de papel, repetidamente nua e, insinuando-se aos seus olhos. As folhas secas de vida materializavam para ele, talvez, um sonho perdido, uma ilusão criada e, ao mesmo tempo, ainda lhe afirmavam a condição de permanecer humano, com algum desejo na vida. Que são os homens senão a condição de desejar, de sonhar? Para mim aquela cena não era apenas um homem vendo uma revista, mas uma história incompleta, um contraste gritante entre a multidão e estar só. A inconcebível condição humana de pobreza. E o que falar da cachorra amarela, de tope laranja na cabeça, que sorria ao ser acariciada em seu carrinho de dormir, que, também era o local onde seu dono carregava os seus poucos pertences? Em meio à multidão de transeuntes, a cadelinha “Lésleilaine” despertava a admiração e caridade de alguns e, ao mesmo tempo, chamava a atenção para triste situação de vida do seu dono. Entretanto, como não definir a condição de felicidade a qual manifestava ele que, orgulhava –se ao falar de sua “filhinha” para a qual deposita todo o amor que tem e recebe em troca? Para que melhor definição de amizade do que a relação de cães e seres humanos que vivem nas ruas? Como definir solidão, gratidão, aconchego, riqueza e pobreza? Volto em casa, emaranhada de nós e novos saberes e, sempre que retorno, há um novo centro em mim e há um centro novo no centro de Porto Alegre.