Eu acredito que a infância será para sempre a fonte aonde
iremos buscar refúgio para a alma. Todo mundo tem nessa fase, as recordações
que alimentam a existência, e quanto mais envelhecermos, maior será nosso
retorno àqueles momentos que o tempo já levou, mas que os sentimentos os impetraram no coração. E
as melhores memórias que tenho do meu tempo de criança, e que, talvez, foram
decisivas para minha construção enquanto sujeito, são as mais simples, mas que
carregam toda a riqueza da vida: a natureza em suas diversas manifestações, em
especial, as flores que minha mãe cultivava. Morávamos no campo, em um
lugarzinho longínquo de tudo, quase isolado do mundo. Carecíamos de quase todos
os recursos materiais para uma vida digna. Não tínhamos energia elétrica, geladeira,
água encanada, televisão, chuveiro, e por ai vai. A vida era mesmo sofrida, e
eu, desde cedo ajudava no trabalho da lavoura. Meus brinquedos, eram as
embalagens vazias de alimentos e a própria terra. Todas as “regalias” que meu
filho hoje tem, eram inimagináveis e inatingíveis para a criança que eu fui um
dia. Somado a isso, nunca tive carinho
paterno, aliás, só desprezo. Eu teria todos esses motivos para lembrar-me com
mágoa e rejeição, mas no contraponto desse lado triste, há algo que me salvou:
as flores da minha mãe, as árvores, os bichinhos, a natureza, em suas múltiplas
dimensões... E no paradoxo de dois mundos extremos, eu fiquei com os encantos
das riquezas que pude guardar e gravar no coração. Apesar de toda a literal miséria, minha querida
e amada mãe nunca deixou de cultivar e plantar, muitas, flores. Talvez, consciente
ou inconscientemente, fazia isso, para poder me oferecer um contraste para
aquele mundo tão sofrido. E deu certo! Ainda lembro, com tanta vivacidade de
memória, as fartas carreiras de lírios brancos que minha mãe cultivava na frente
de casa. Adorava, ir vê-los e cheirá-los, de manhã cedinho, quando ainda estavam
orvalhados pelo sereno da madrugada. O
seus pólens amarelos, se desmanchavam e coloriam meu nariz e minhas mãos, exalando
beleza, numa sinfonia de antagonismo para
aquela vida árdua. Também, impossível esquecer a magnitude e profundo encanto
das dálias, cor de vinho, vermelhas, brancas, bem como, das coloridas palmas de
santo antônio, que se abriam em um espetáculo tão singular, e oposto à peculiaridade
daquela nossa condição de existência. Na minha memória residem as rosas, as
compridas carreiras de margaridas brancas e amarelas, que minha mãe cultivava,
e que pintavam a frente da nossa singela casa, com ternura, cor e movimento. Tão vivas quanto a singularidade do meu
presente, são as flores de “brinco de rainha”, que se avolumavam em touceiras, de fronte da nossa humilde casa de madeira, as quais eu adorava imitar os beija-flores, e sugar-lhes
o néctar, injetando doçura naquela vida amarga. E ao lado, rentes àquela estreita estradinha
vermelha e barrenta, que dava acesso ao nosso fim de mundo, estavam os hibiscos
duplos, de cor vermelha, e as espetaculares e múltiplas flores brancas de “grinalda de
noiva”, que se exibiam magnificamente, evidenciando que a vida, apesar de tudo,
podia ser bela.
Assim, nesse profundo contraste, as flores da minha mãe, me
ajudaram a construir uma realidade paralela, a qual me moldou de coragem e resiliência,
para mais tarde enfrentar o mundo, com outros olhares. E os animaizinhos também
foram fundamentais para mostrar-me que o amor pode estar em qualquer lugar onde
haja um coração. E esse amor, que eu não
tive do meu pai, eu via no meu porquinho, chamado Xiquinho, o qual deitava-se
quando me via, a espera de um carinho. Ah, e o cachorro “Canheto”, que dava a
patinha para dizer bom dia, e ia junto comigo para todos os lugares, ressaltando
o valor da amizade. E os inúmeros bezerros , galinhas, e mais tarde, os
gatinhos, todos ajudaram-me na arte de ver a beleza da vida, mesmo no meio do
caos. E assim, como planta, eu me moldei às peculiaridades da aridez aonde eu
estava, mas sabendo que era também semente, para florir em outros lugares.
Meu amor pela natureza ficou tão grande, que após
crescer um pouquinho, eu mesma comecei a plantar árvores e flores, para colorir
do meu jeito, a minha singela vida. Entendi que rodear-me do que me tirava das
trevas, era a maneira de dar a volta por cima. Assim, de tempos em tempos, eu plantava
uma árvore, e algumas flores, e nesse processo terapêutico de cura e afago da
alma, nasceu meu amor pelas pitangueiras, as quais fiz carreiras, em frente a
nossa casa.
Ademais, jamais poderia esquecer da grande contribuição do rio
Uruguai, que banhava nossa terra. Ele se tornou um refúgio de observação e
beleza para mim. Toda vez que eu ficava triste, ou buscasse inspiração,
caminhava pela plantação, até ter a vista do rio. Sentava-me em uma pedra
grande, e observava a calmaria das suas águas, bem como, os obstáculos que ele
contornava. Aprendi, que o rio, que eu tanto mirava, era belo por ser tortuoso,
e por ser assim, alcançava, de mansinho, o mar. Aos poucos, compreendi, que tal
qual o rio, eu também era maior que aquele lugar, e precisava, lidar com as
barreiras da minha vida. E assim eu fiz (outro dia escrevo sobre isso). De tanto
observar o movimento da natureza, eu não
tive medo de lançar-me para outros solos e ventos, na certeza de que a vida é
balanço e recomeço, é partir , e é chegar.
Então, o conselho que eu deixo: plante flores para seus
filhos, no chão, em um pote, onde der. Se puder, cultive uma árvore, tenha um
animalzinho, e incentive o amor entre eles. Eu faço isso com meu filho, porque aprendi que uma das melhores heranças que
podemos deixar para um filho, são as experiências, que o moldarão, e que se
traduzirão em boas memórias da infância, as quais , pela vida toda, ele beberá,
em profundidade, e em cada detalhe.
Hoje, embora naquele lugar não exista mais nada, ele ainda habita
em mim, com a minuciosidade e riqueza de
todos os pormenores. E, morará na minha existência,
pelo resto da vida, como um afago para a
alma, e um sopro de coragem, toda vez que meu presente estiver um pouco
cinzento, ou que eu quiser me deliciar na nostalgia de um tempo singularmente meu.